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Angra Jazz 2023

(Todas as fotos por Rui Caria)

JAZZ DE PRIMEIRA NA TERCEIRA

Paulo Barbosa

Orquestra Angrajazz
A dar início, como de costume, ao programa do festival, a Orquestra Angrajazz apresentou-se em muito boa forma, sendo de louvar o desempenho de alguns dos seus elementos mais jovens como solistas em vários temas – importante garantia de continuidade para a orquestra –, bem como a escolha do vibrafonista Jeffery Davis como solista convidado, o qual, paralelamente ao seu excelente trabalho enquanto improvisador principal, adornou, com subtileza e enorme beleza, a exposição e reexposição de quase todos os temas apresentados.
Igualmente interessante foi a escolha do repertório, uma seleção que, instruída pelo bom gosto dos maestros Pedro Moreira e Claus Nymark, nos ofereceu leituras muito bem conseguidas de belíssimas peças da autoria de alguns dos mais importantes compositores do jazz, de entre os quais se destacam Wayne Shorter (“Footprints”, com um interessante solo pelo saxofonista Rui Melo), Horace Silver (“The Jody Grind”) ou Benny Golson (“Stablemates” e “I Remember Clifford”), ao lado de outros clássicos como “Jordu” (Duke Jordan), “Bernie’s Tune” (Bernie Miller), “Afternoon in Paris” (John Lewis) ou “Invitation” (Bronislaw Kaper).
É este um trabalho que merece continuar a ser acarinhado, não apenas pelo seu cariz pedagógico-formativo e de promoção do jazz, mas, a avaliar pelo concerto aqui apresentado, também pelo seu efetivo resultado em termos performativos. O concerto foi dedicado a Claus Nymark, que, por motivos de ordem pessoal, não pode estar presente – uma expressão de carinho mais do que merecida pelos anos e anos de dedicação do grande trombonista a esta orquestra!

Renee Rosnes Quintet
O segundo concerto da primeira noite do Angrajazz esteve a cargo de Renee Rosnes, uma deslumbrante pianista que se fez acompanhar de um grupo de músicos todos eles igualmente brilhantes: Steve Wilson nos saxofones alto e soprano, Nicole Glover no sax tenor, Peter Washington no contrabaixo e Carl Allen na bateria.
De uma ponta a outra do concerto, o que se ouviu foi jazz tocado ao mais alto nível, propulsionado por uma secção rítmica de topo e com improvisações plenas de substância e significado a desfilarem umas a seguir às outras.
Logo a começar o concerto, no original “Galapagos”, Carl Allen fez-nos ouvir – e a fazer lembrar Max Roach! – a sua incrível afinação nas peles, ao mesmo tempo que a pianista revelava o seu som cristalino, belíssimo e absolutamente controlado.
O ponto mais alto do concerto foi, para estes ouvidos, a leitura da balada “Now!”, de Bobby Hutcherson, mas houve vários outros momentos de grande beleza, como em “Ba-Lue Bolivar Ba-Lues-Are” (Thelonious Monk), com solos magistrais por todos os membros da banda, bem como na balada “Diana” (de Wayne Shorter), na qual a sincronia dos cinco músicos foi de cortar a respiração. Mesmo num ou noutro original que poderia soar como demasiado “bem-comportado”, as improvisações por qualquer dos músicos do quinteto abriam e desenvolviam sempre a música para níveis de interesse sempre superiores.

Ben Allison Trio
A abrir a segunda noite do Angrajazz, o trio do contrabaixista Ben Allison, com o saxofonista Ted Nash e o guitarrista Steve Cardenas, ofereceu-nos um (mais um!) concerto de enorme elegância e muito requinte, tanto na escolha do repertório como no domínio da interpretação, marcada por um nível de “interplay” absolutamente impressionante. Allison, Nash e Cardenas tocam com uma intimidade tão elevada que o resultado não poderia deixar de ser música altamente intimista, à qual é, por isso mesmo, impossível ficar indiferente.
Tendo Ben Allison e Ted Nash sido membros do saudoso Herbie Nichols Project, que esteve presente na edição de 2004 do Angrajazz, é natural que tenham sido apresentados três temas da pena de Nichols, mestre ainda não devidamente reconhecido como um dos maiores compositores de todo o jazz e um daqueles casos que bem podem ser descritos como “muito à frente do seu tempo”. Representada com duas peças de cortar a respiração – “Ida Lupino” e “Lawns” – esteve Carla Bley, compositora e pianista que recentemente nos deixou e que, em 2013, nos ofereceu um concerto memorável no Angrajazz. Mas, desde a sua abertura com uma belíssima leitura de “The Train and the River”, de Jimmy Giuffre, até ao seu final, assistimos a um concerto em tudo notável, cheio de ternura e bom gosto musical.

Coreto
A segunda noite do Angrajazz prosseguiu com a atuação do grupo Coreto. Qualquer dos três álbuns anteriores desta formação é substancialmente mais acessível do que a obra apresentada neste concerto – uma suite constituída por sete partes, intitulada “A Tribo”, registada em 2021 no álbum com o mesmo nome.
E, embora muitos tenham achado e, no final do concerto, comentado que cada músico parecia “tocar para o seu lado”, esta música é o perfeito inverso disso mesmo. É música complexa, sofisticada e assente numa escrita (da autoria de João Pedro Brandão) minuciosa e plena de nuances, com forte ligação à música erudita contemporânea e, no caso concreto de “A Jornada”, à de compositores como John Hollenbeck ou Darcy James Argue.
A música deste concerto não terá, de facto, sido de fácil “digestão” para grande parte do público, mas outro facto é também que este não arredou pé e foi degustando o que ouvia conforme podia e sabia. É bom perceber que o Angrajazz tem vindo a educar ouvintes outrora não preparados nem capazes de lidar com o profundo sentido de aventura e desafio que caracteriza esta formação e mais particularmente esta obra. Uma aposta ganha!

Immanuel Wilkins Quartet
A abertura da última noite do festival esteve a cargo de uma das unidades mais poderosas e impactantes do jazz de hoje, mas também do de amanhã... A música de Immanuel Wilkins não se explica em palavras; ela tem de ser ouvida e experienciada, de preferência ao vivo. A meio do segundo tema – “The Big Country” –, lágrimas assomavam-se nos olhos, expressando um nível de emoção que apenas os melhores são capazes de despoletar.
As melodias da maior parte das composições de Wilkins são elusivas e fugidias, muitas vezes mesmo algo crípticas, mas um ouvido atento e concentrado facilmente descobre e absorve a sua vasta riqueza e a sua profunda beleza.
Saxofonista brilhante, de imaginação e fluidez inesgotáveis, Wilkins toca ele próprio (e como um profissional) cada um dos restantes instrumentos do seu quarteto, o que provavelmente lhe facilita uma audição muito especial não apenas do som global, mas também do papel que cada um dos instrumentos é suposto desempenhar na construção desse som, o que poderá ser determinante na conceção de arranjos tão especiais para este quarteto e no modo tão único e inconfundível como os faz soar nas mãos destes magníficos instrumentistas.
Kweku Sumbry é um dos mais vigorosos e tecnicamente aprumados bateristas da atualidade; a Rick Rosato cabe ancorar tanta ação – e é mesmo de muita ação que se trata! – com o seu contrabaixo, sem jamais aprisionar a música, deixando-a voar alto, como ele pede, mas de forma segura; e Micah Thomas é um pianista à parte, um músico que parece ter aprendido tudo num planeta que não o nosso, cujos solos são verdadeiramente (e harmonicamente) “fora de órbita” e cujo comping não é comping, mas antes uma espécie de pinceladas, normalmente proferidas dos ângulos mais inesperados, que não fazem se não embelezar ainda mais a tela musical do quarteto.
Wilkins dá provas de que o jazz pode, ainda hoje, e sem imitar Coltrane, irradiar uma intensidade “coltraneana”. E mostra também que, se o (verdadeiro) vanguardismo no jazz já não é o que foi noutros tempos, a poeira da inovação ainda não assentou e teima em não assentar.

Vivian Buczec Group
E, porque não há bela sem senão, o concerto menos admirável do festival foi aquele com que este terminou. Ainda que a decisão de fechar uma noite (ou o festival, neste caso) com uma voz faça todo o sentido, qualquer músico, cantor ou não, estaria sempre em apuros depois de uma atuação tão intensa e absorvente quanto a de Immanuel Wilkins.Além disso, a verdade é que a saúde do jazz vocal não será a melhor nos tempos que correm, havendo pouco mais de meia dúzia de vocalistas com nível suficiente para serem incluídos num festival com uma programação como a do Angrajazz. E a verdade é também que quase todos eles, como Cécile McLorin Salvant, Samara Joy, Kurt Elling ou Gregory Porter, se apresentaram em Angra em edições anteriores do festival. É perfeitamente compreensível que evitar a repetição de artistas seja um critério de programação, mas, perante a referida escassez de grandes cantores no atual panorama do jazz, não seria mal pensado flexibilizar tal critério, até porque, mais cedo ou mais tarde, a repetição terá de acontecer...
Posto tudo isto, Vivian Buczec, acompanhada por uma banda competente, revelou uma voz algo poderosa e um sentido rítmico apreciável, mas a sua capacidade de afinação deixa muito a desejar e, globalmente, a sua prestação foi pouco além da de uma cantora de bar ou de casino. Assassinou vários temas belíssimos – “Throw it Away”, de Abbey Lincoln, e “Waltz for Debby”, de Bill Evans, foram os dois momentos mais trágicos – e apenas no encore satisfez, em duo com o pianista, com uma versão de “Prelude to a Kiss”, de Duke Ellington. Um concerto que até poderia passar meio despercebido em muitos festivais “de segunda”, mas o Angrajazz já há muito tornou claro que, na Terceira, é suposto ouvir-se apenas jazz de primeira, como foi, em todo o resto, o caso desta edição do festival!

Paulo Barbosa

(Paulo Barbosa esteve no AngraJazz a convite do festival)